Enquanto escrevo este post reparo pela Marketwatch que as bolsas na Europa estão novamente em queda e os futuros do índice S&P sinalizam que Wall Street deverá abrir também em baixa. Ao que parece, a Moody’s (sim, a mesma que nos atirou para o lixo) entende que as decisões emanadas do BCE e da Cimeira da UE da semana passada são insuficientes e tardias …
Como constatarão, depois de analisar estes dois eventos, a minha conclusão é que se aliviaram as pressões em termos de liquidez mas ainda não se fez o suficiente em termos de solvência, e isso poderá trazer novos problemas de liquidez em breve. E onde é que entra a faca e o queijo? Para saber isso terão de continuar a ler … 😉
Então o que fez o BCE? Como refere a Reuters, decidiram manter a compra de dívida pública de Estados soberanos da Área do Euro mas limitado a 20 mil milhões de euros POR SEMANA. Este número é grande ou pequeno? A palavra ‘limitado’ levou muitos analistas a pensar que era pequeno, mas será? Não! Basta reparar que 20 MME por semana corresponde a mais de 1 bilião de euros (ONE TRILLION EUROS que em algarismos dá: 20 000 000 000 EUR x 50 = 1 000 000 000 000 EUR) por ano. Para colocar este número em perspectiva, basta saber que é suficiente para quase 55% dos 1,9 biliões (sim, são trillions em inglês … se quiser parar para ir tomar uma aspirina está à vontade) de dívida pública soberana da Área do Euro que precisará de ser refinanciada em 2012. (Veja, por exemplo, aqui.)
Isto quer dizer que o bilião de euros que estará à disposição para a compra de dívida pública soberana é dinheiro que os contribuintes europeus terão de pagar? É possível que sim, mas não necessariamente. Para evitar que o seja, as regras definidas para uma maior integração orçamental (‘fiscal’ em inglês traduz-se para português como ‘orçamental’; ‘tax’ em inglês traduz-se para português como ‘fiscal’) terão de ser adequadamente aplicadas.
Portanto, poderão pensar, menos mau. A Europa tem agora um guarda-fogo (firewall) de um bilião de Euros. Agora é que ninguém se mete connosco. Será?
Vamos à segunda parte da história – o que aconteceu no dia seguinte, na cimeira da UE em que se decidiu aprofundar a integração orçamental entre os Estados Membros. O que se decidiu foi basicamente a obrigação de manter o défice estrutural das contas públicas inferior a um valor de referência: os 0,5% do PIB … e é aqui que a porca torce o rabo.
Antes de mais, vale a pena esclarecer dois pontos: 1) alguns media têm dito que vamos ter de respeitar este limite já em Março do próximo ano – não é bem assim – vai haver um período de transição; e 2) alguns media (não reparei se são os mesmos ou não) têm referido esta nova regra (é uma espécie de Pacto de Estabilidade recauchutado) como a regra de ouro das finanças públicas – não é! – Como é descrito nesta definição, a verdadeira regra de ouro das finanças públicas diz que ao longo de um ciclo económico completo o Estado apenas poderá endividar-se para financiar despesa de capital (investimento público que beneficiará as gerações futuras) e não para financiar despesa corrente.
Se calhar os media referiam-se a outro tipo de regra de ouro: a) quem tem o ouro faz as regras, ou b) não faças aos outros o que não queres que te façam a ti. De qualquer forma, a) e b) aplicam-se perfeitamente à Alemanha que neste caso teve a faca e o queijo na mão. Vale a pena também relembrar que a anterior revisão do Pacto de Estabilidade foi uma iniciativa da França e da Alemanha depois de terem incorrido em défice excessivo. Afinal, as regras eram demasiado rígidas, não eram? Faz o que te digo, não faças o que eu faço.
Agora que já esclarecemos esses dois pontos, vamos ao que interessa: o défice estrutural das contas públicas. Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o adjectivo ‘estrutural’ não é sinónimo de crónico ou difícil de resolver. O défice estrutural das contas públicas é simplesmente o desequilíbrio entre o que a receita pública e a despesa pública total seriam se o produto interno bruto (PIB) efectivo estivesse ao nível do PIB potencial. Como aparece nos livros de texto em finanças públicas, separa-se o défice global em duas componentes: o défice cíclico e o défice estrutural, sendo que o primeiro resulta do funcionamento dos chamados estabilizadores automáticos, enquanto o remanescente é o resultado de uma política orçamental discricionária. Ou seja, o défice estrutural depende de decisões tomadas enquanto o défice cíclico resulta da aplicação de regras instituídas que, pelo andamento da economia ao longo de um ciclo económico, resultam variações quer do lado das despesas quer do lado das receitas. Por exemplo: durante uma recessão, a despesa em subsídios de desemprego aumenta, ao mesmo tempo que as receitas de impostos como o IRS, o IVA e o IRC diminuem porque a base fiscal se contrai em virtude de uma actividade económica menos robusta.
O problema prático para determinar se um país violou ou não o limite dos 0,5% do PIB em termos de défice estrutural será o de impedir que um Governo classifique determinada medida que tem impacto orçamental como sendo uma medida não discricionária.
Deixo-vos com este link da Worthwhile Canadian Initiative que refere várias razões pelas quais este indicador nem serve nem vai servir. Como dizem a certa altura, daqui a uns anos temos um qualquer Governo a contratar os serviços de um qualquer macroeconomista de renome para convencer os juízes que o défice verificado, afinal, é quase todo ele um défice cíclico (i.e., não é um défice estrutural), e assim escapa às sanções previstas.
Assim, é caso para dizer que os mercados já devem ter percebido isto e, como tal, os problemas de liquidez deverão reemergir em breve, dado que os problemas de solvabilidade continuam por resolver.
Portanto, como vêem, esta é uma regra da faca (austeridade) e do queijo (o indicador usado para aferir o incumprimento orçamental é autêntico queijo … daquele que se desfaz quando o tentamos cortar … humm, de repente, fiquei com fome …).