Muito pouco arrojado …

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Não costumo comentar as intervenções dos líderes dos partidos, mas abro uma excepção sempre que ouço na mesma frase as palavras programaGoverno. E assim foi, quando no passado dia 17 de Maio o líder do Partido Socialista apresentou 15 medidas de um conjunto de 80 que fazem parte do que ele chamou de “Contrato de Confiança” com os Portugueses.

Não que a minha expectativa fosse muito grande, mas fiquei seriamente desapontado. Um programa de Governo é uma coisa muito séria, porque concretiza em passos muito concretos uma visão estratégica que um Primeiro-Ministro tem para o futuro do seu país. Se isto é o melhor que se conseguiu arranjar e que, citando o próprio, “resulta dos contributos dos melhores profissionais que o nosso país tem”, estamos muito piores do que eu pensava. Mesmo sem ler o discurso (e eu li!), basta fazer uma nuvem de palavras a partir do texto (como fiz!) para rapidamente perceber que se trata de um contributo muito modesto, pouco quantificado, e muito pouco arrojado dado os ENORMES desafios que enfrenta(re)mos. Como é possível que palavras como ‘quero’, ‘não’, ‘fé’ e ‘política’, por exemplo, sejam mais usadas que outras como ‘economia’, ‘investimento’, ‘crescimento’, ou ‘sustentabilidade’? Isto já para não falar da adopção (da política norte-americana dos últimos anos) de frases feitas como “mudança” e “não deixar ninguém para trás”.

Passando para as 15 medidas que foram apresentadas, tenho alguns breves comentários a tecer sobre algumas que foram referidas (as que não refiro são muito parecidas com as intenções do actual Executivo, ou pelo menos assim parecem):

1. Não aumentar mais a carga fiscal. Pois era só isso que nos faltava! Ora se criticam o excessivo fardo em termos de taxas, contribuições e impostos, não seria de se comprometerem com a descida dos mesmos, nem que fosse dependente da evolução do PIB? Indirectamente, o eleitorado percebe desta medida a grande relutância do PS em reduzir a despesa pública. Investigação recente (ver por exemplo este artigo recente) sugere que uma consolidação orçamental bem sucedida não se pode resumir a uma redução do peso da dívida pública no PIB; deve incluir também uma redução da carga fiscal, porque só reduzindo as distorções que esta provoca na economia é que podemos crescer mais depressa e assim aliviar as tensões sociais e políticas.

2. Acabar com a Contribuição de Sustentabilidade (algo que designa por TSU dos pensionistas). A realidade é que o país está a envelhecer, o que implica que há cada vez mais inactivos por cada activo a trabalhar. Ora se assim é, parece-me natural que caminhemos cada vez mais para uma situação onde os idosos (uma base fiscal que tende a alargar com o tempo) sejam chamados a pagar cada vez mais dos impostos totais. Não é por nada que por toda a Europa (e em particular nas economias da periferia) se equaciona a chamada ‘desvalorização fiscal’, onde se baixa a tributação sobre o factor trabalho e se aumenta a tributação sobre o consumo.

3. Aumentar o salário mínimo. Esta medida tem as melhores intenções: combater a pobreza  e dinamizar a economia, mas a evidência de outros países sugere que, quando se aumenta o salário mínimo, quem mais sofre são aqueles com baixas qualificações que vão ter ainda maior dificuldade em encontrar ou segurar o seu emprego. Imaginem que são donos de um quiosque que vende cafés. Actualmente emprega uma pessoa que recebe o salário mínimo (485 euros por mês), mas que a si lhe custa 485 * 1,2375 = 600,19 euros por mês. Se o salário mínimo subir para 500 euros por mês, o seu custo com aquele trabalhador vai aumentar para os 618,75 euros (o salário de base mais as contribuições patronais para a Segurança Social). Como dono do quiosque, o que vai determinar se mantém o trabalhador o se o dispensa? Vai ter de o dispensar se começar a ter prejuízos, i.e., se as vendas forem insuficientes para compensar o acréscimo de custos. Portanto, se concordo com a frase que diz algo como “o emprego é uma das melhores formas para retirar alguém da pobreza”, já não concordo que o aumento do salário mínimo seja a melhor forma de ajudar essas pessoas. Aliás, pode até prejudicá-las, acabando por beneficiar apenas quem conseguir manter o seu emprego. E lembre-se que nem todos aqueles que auferem o salário mínimo são pobres. Há universitários e outros jovens, por exemplo, que também fazem parte desse grupo. Em vez do aumento do salário mínimo, sugiro que estudem outras alternativas como, por exemplo, o EITC, o “earned income tax credit” que tem tido muito sucesso nos EUA e existe há décadas. E quanto a dinamizar a economia? Primeiro, não é nada líquido que aumentando o salário mínimo nacional as famílias recebessem mais, em média, porque como expliquei, haveria um aumento do desemprego entre os menos qualificados. Em segundo lugar, mesmo que todos aqueles que agora recebem o salário mínimo recebessem mais, estaríamos a repetir um erro do passado, que foi depender do consumo privado para relançar a economia. Uma expansão do PIB (um mero aumento da actividade económica que pode ser obtido pelo aumento de qualquer uma das seguintes componentes do PIB: consumo, investimento, despesa pública, ou exportações líquidas) é algo bem diferente do crescimento económico sustentado. Ninguém sugere, certamente, que se relance a economia aumentando o défice orçamental, pois não?

4. Tributar os fundos de investimento, as transacções financeiras, e ainda privatizar os activos não estratégicos. A chamada taxa Tobin será uma realidade europeia em breve, mas eu questiono-me sobre que sentido faz tributar ainda mais o factor capital, quando por cá ele é cada vez mais escasso. A oferta de capital é efectivamente muito elástica, o que quer dizer que quem poupa e disponibiliza os seus recursos financeiros tem muitos activos por todo o mundo por onde escolher investir. Ao aumentarmos a tributação por cá, estaremos simplesmente a dizer não precisamos nem queremos os seus recursos.

5. Reindustrializar o país. Que eu saiba, é o sector dos serviços que é cada vez mais pujante e que promete ser o sector com mais futuro numa sociedade envelhecida. Admito que posso não ter percebido o alcance da proposta.

6. Qualificar os recursos humanos através de fundos comunitários. Pois. Apoiado, na parte do reforço do capital humano. O problema é que a utilização dos fundos exige a comparticipação por fundos nacionais. Podemos não ter o espaço orçamental para aproveitar esta oportunidade.

7. Criar uma estação Oceânica Internacional nos Açores. Humm … Interessante. Mas quantos empregos é que essa iniciativa vai criar? E vai nos custar quanto? Quanto é que isso dá em termos de cada emprego criado? Humm … Contas, contas.

8. Não introduzir o plafonamento das contribuições para a segurança social. Apoiado!

9. Renegociar as condições da dívida pública, e fazer a mutualização da gestão de parte das dívidas públicas. Pois, por um lado é verdade que o nosso serviço à dívida dava para financiar um ministério. Mas por outro, como obter melhores condições? Como baixar a taxa de juro? Uma ideia que esteve na moda há uns semestres foi a de haver dívida azul e dívida vermelha. Dívida azul era toda a dívida até aos 60% do PIB, (re)financiados a uma taxa “simpática”, enquanto a dívida vermelha correspondia ao excesso acima desse referencial e tinha implícita uma taxa mais elevada. É isto? Peço mais detalhes.

10. Obter capacidade orçamental própria para apoiar investimento e reformas e para proteger de choques assimétricos. Humm … Isto quer dizer o quê? Obter a autorização para incorrer em défices orçamentais mais elevados sempre que se queira fazer uma reforma estrutural (tipo pagar indemnizações a funcionários públicos?), fazer uma obra pública (aqui a lógica seria da regra de ouro, a clássica e não a que subscrevem ao Tratado), ou quando a taxa de desemprego sobe? Como pretendem convencer os Alemães e os Finlandeses, por exemplo, a financiar parte dos nossos subsídios de desemprego? Estamos dispostos e temos capacidade para responder em reciprocidade?

Como vêem, muitas questões em aberto. E quanto à tal visão estratégica para o futuro de Portugal … muito pouco. Os Portugueses e as Portuguesas merecem muito muito mais.

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Sobre Pedro G. Rodrigues

Investigador integrado no Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) e Professor Auxiliar do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa. Doutorado em economia pela Universidade Nova de Lisboa. Email: pedro.g.rodrigues@campus.ul.pt
Esta entrada foi publicada em Crescimento económico, Finanças públicas. ligação permanente.

Uma resposta a Muito pouco arrojado …

  1. anabrav diz:

    Tem toda a razão! Bem comentado! Não basta anunciar objetivos e forma tão vaga, convém mostrar “contas…contas” (citando-o a si) e dizer quais as vias ou medidas para os concretizar….

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