Reproduzo aqui o artigo de opinião de ALFREDO MARVÃO PEREIRA que foi publicado na edição de hoje do jornal Público.
Uma das medidas mais emblemáticas da Agenda para a Década, posteriormente incorporada no Programa Eleitoral do PS, é a proposta de redução da TSU dos trabalhadores. Se é certo que neste momento conhecemos poucos detalhes concretos sobre esta medida, os seus contornos são claros. A ideia é reduzir de forma temporária, obrigatória e universal a taxa de contribuição dos trabalhadores do Regime Geral da Segurança Social com menos de sessenta anos. Ficam assim excluídos os funcionários públicos, exceto aqueles que já contribuem para a Segurança Social. A esta redução nas contribuições corresponderão pensões mais baixas no futuro para os contribuintes abrangidos. Assim sendo, a medida será globalmente neutra em valor atual do ponto de vista do orçamento plurianual da Segurança Social, ainda que não o seja ano a ano. De facto, tratase de compensar uma quebra de receita no presente com uma menor despesa com pensões no futuro. O objetivo desta medida é também claro. Tratase de aumentar temporariamente o rendimento disponível dos contribuintes abrangidos de modo a estimular o consumo privado, e dessa forma contribuir para uma atividade económica mais dinâmica. Este objetivo justifica, aliás, a importância da obrigatoriedade e da (quase) universalidade da medida. Para garantir um aumento significativo do consumo privado, quanto mais trabalhadores forem abrangidos pela medida, tanto melhor, e não podem optar por não participar. Pela ausência de muitos detalhes cruciais, esta é uma medida que levanta várias questões técnicas. Por exemplo, como garantir a prazo a neutralidade orçamental da medida? Que garantia há de que no futuro não haverá um agravamento fiscal para compensar a falta de receita entretanto gerada? Como se coaduna esta medida com futuras reformas do sistema público de pensões? Levanta também várias questões sobre os seus possíveis efeitos económicos. Como irá afetar a poupança? Que efeitos terá sobre as contas externas? Quais serão os seus efeitos de curto e longo prazo sobre as finanças públicas? Por muito relevantes que todas estas questões sejam, a preocupação neste artigo é de natureza mais conceptual e prendese com as ramificações inevitáveis ainda que muito provavelmente não intencionais da proposta. É sabido que a proporção do rendimento disponível adicional que é poupado pelas famílias (o que os economistas designam por ‘taxa marginal de poupança’) cresce com o nível de rendimento. Isto é, quanto maior for o rendimento disponível, mais se tende a poupar de qualquer aumento do mesmo, independentemente da sua origem. Assim, um contribuinte de baixo rendimento provavelmente gastará na forma de consumo a quase totalidade do aumento de rendimento proporcionado pela redução das contribuições para a Segurança Social propostas. Por outro lado, um contribuinte de alto rendimento tenderá a poupar uma boa parte do rendimento adicional que a medida lhe proporciona. Este facto, só por si, significa que os contribuintes de rendimento mais elevado terão a oportunidade de aplicar essas poupanças adicionais no sector privado, e desse modo suplementar o seu rendimento futuro na reforma. Algo que os contribuintes de mais baixos rendimentos muito provavelmente não irão fazer. Assim, se se reduzirem de modo uniforme as contribuições de todos os trabalhadores no ativo, as diferenças nas taxas marginais de poupança entre os contribuintes de rendimentos mais baixos e mais altos, poderá levar, imagino que não intencionalmente, a um aumento da desigualdade de rendimentos na reforma. Ou seja, com esta medida, o contribuinte de mais baixo rendimento terá o seu rendimento na reforma proporcionalmente mais reduzido que o contribuinte de mais alto rendimento. Quaisquer ajustamentos na proposta em sede de TSU com vista a obviar este efeito, além de trazerem pela sua complexidade sérios problemas de implementação, comprometeriam de forma significativa a eficácia da medida como alavanca do consumo privado. Por outro lado, uma vez que as classes de mais alto rendimento tenderão a poupar parte do rendimento adicional que auferem devido a esta medida, e uma vez que ela é obrigatória para todos, estes serão necessariamente levados a aplicar a sua poupança no sector privado em Portugal ou mesmo no estrangeiro. Assim sendo, a medida tem como resultado, imagino que não intencionalmente, reforçar o papel supletivo do uso do sector privado financeiro na provisão de rendimento na reforma. Consideremos agora um outro aspeto. Se se considera que por razões de conjuntura macroeconómica as pensões da atual geração de contribuintes devem ser reduzidas, reconhecese implicitamente que – na maioria dos casos ou pelo menos em média – as atuais pensões a atribuir são superiores às que o Estado deve garantir. Se não se assume este facto, a medida não faz sentido uma vez que comprometeria seriamente um rendimento adequado dos futuros reformados, pelo menos para alguns. Ora, se se reconhece que de facto as pensões são em média superiores às que o Estado deve garantir, e que portanto o Estado pode decidir que os contribuintes devem descontar menos no presente e também receber proporcionalmente menos no futuro, por que é que não se deixa os contribuintes decidirem no geral se querem ou não contribuir tanto para a Segurança Social? Ao permitir aos contribuintes ficar com maior rendimento disponível durante a sua vida contributiva e aplicar no sistema financeiro o rendimento liberto, obteriam quase certamente taxas de rendibilidade superiores sobre a sua poupança, ainda que naturalmente com algum risco associado. Em última análise permitiria aos contribuintes alcançarem reformas na sua globalidade mais elevadas. Ou seja, a proposta de redução da TSU dos trabalhadores, imagino que não intencionalmente, pode marcar o princípio de uma redução progressiva do âmbito do sistema por repartição em Portugal. Claro que a grande preocupação com abrir a todos os contribuintes esta escolha de redução de contribuições no presente e redução na mesma proporção de pensões públicas no futuro, seria a de garantir a adequação na reforma para todos das pensões pagas pelo sistema público. Isto só se poderia garantir ao permitir esta discricionariedade acima de certos limiares de rendimentos. Ou seja, esta medida abre a porta, imagino mais uma vez que não intencionalmente, à questão do plafonamento das contribuições e das pensões. Para concluir. Teríamos de conhecer todos os detalhes para poder avaliar com rigor a bondade desta medida de política económica e a sua neutralidade em termos das contas da Segurança Social. O que é certo, para já, é que esta proposta tem ramificações – provavelmente não intencionais – que são da maior relevância para um futuro debate que se avizinha sobre como deve ser organizado o sistema público de pensões em Portugal.
Thomas Vaughn Professor of Economics no The College of William and Mary