Quão generosa é a Segurança Social?

Advertência: O post de hoje é técnico mas muito interessante. Ao prosseguir, assume um risco pelo qual o 10envolver não pode ser responsabilizado. 😉

Uma nota prévia destinada a ajudar o leitor menos versado nestas questões técnicas: Uma nova pensão (dita estatutária) é calculada pelo Centro Nacional de Pensões como o produto do número de anos de contribuições pela taxa de formação (este era um número como 2% mas agora é progressivo e pode ir até 2.3%) e ainda pela remuneração de referência que é simplesmente uma média de um certo número de anos de remunerações que serviram de base para fazer as contribuições sociais e que são depois usados para calcular a pensão dita estatutária. Este valor depois multiplica-se pelo Factor de Sustentabilidade que é um número abaixo de um.

Para comemorar o centésimo post do 10envolver, decidir tentar deixar de lado a miopia dos acontecimentos da actualidade (algo que um amigo meu gosta de referir como a espuma do dia-a-dia) e, em vez disso, focalizar-me num tema geracional. Sim, vou falar de Segurança Social, mas vou abordá-la de forma um pouco diferente do que normalmente é feito. Vou focar a análise na chamada taxa interna de rendibilidade, ou TIR.

Antes que pensem que é mais um imposto (não é!), deixem-me explicar o que é a TIR com um exemplo simples. Imagine que deposita €1000 num banco e, passado um ano, o mesmo lhe devolve €1060.90, depois de impostos (uma retenção em sede de IRS). Sabendo que a taxa de inflação que entretanto erodiu o seu poder de compra foi de 3%, ganhou €1060.90/1.03 – €1000 = €30. A sua rendibilidade em termos reais (é isto que interessa para o seu poder de compra) foi de 3%, i.e. €30 ganhos / €1000 iniciais. A estes 3% damos o nome de TIR, ou taxa interna de rendibilidade.

As contas são um pouco mais complicadas de fazer (mas nada de transcendental) no caso de um plano de poupança reforma em que fazemos entregas ou depósitos durante uma série de anos e depois recebemos uma pensão durante o número de anos em que estivermos vivos. Aliás, o Excel tem uma função, o =IRR(“Seleccionar área”), que permite calcular a TIR implícita numa sequência de números do tipo: -1000, +1060.90. O sinal menos quer dizer que entregámos um montante; o sinal mais quer dizer que recebemos outro montante. O truque é garantir a consistência dos números, i.e. ou usamos sempre valores em termos nominais ou sempre todos os valores em termos reais (i.e., descontados do efeito da inflação). Nada mais simples!

E então, munido da função =IRR() do Excel, o que é que eu fiz? Fazendo as seguintes hipóteses, fui calcular a taxa interna de rendibilidade (TIR) implícita na história de contribuições e na posterior sequência de pensões pagas pela Segurança Social a um trabalhador com determinadas características típicas que se reforma em 2012:

1) O trabalhador começou a descontar para a Segurança Social aos 30 anos, idade à qual recebia €900 brutos (ilíquidos, i.e. antes de contribuições para a Segurança Social e antes de IRS) valorizados aos preços de hoje – logo correspondiam ao cabaz de bens e serviços que se poderia comprar com esse montante. [Optei por este valor de remuneração bruta porque é aquele que permite ao trabalhador, quando este se reforma em 2012, ter uma remuneração de referência muito perto de 2 x IAS, o indexante de apoios sociais. E por que é que este caso é o mais interessante de todos? Porque este é o trabalhador com o rendimento bruto mais elevado que beneficia de uma taxa de formação de 2.27%, um valor que eu estimo seja representativo no caso Português.]

2) O trabalhador reforma-se aos 65 anos de idade, com uma carreira de 35 anos de contribuições. [Note: Pode ter trabalhado mais do que 35 anos, tendo começado a trabalhar bem antes dos 30, contudo observamos que as carreiras para efeitos de cálculo da pensão são mais curtas que o tempo total passado a trabalhar.]

3) Depois de se reformar aos 65, vive mais 20 anos completos até aos 84. [Bem sei que a lei actualmente prevê o posterior pagamento de uma pensão de sobrevivência que é uma percentagem (em torno dos 60%) ao viúvo ou viúva, mas não a considerei nos meus cálculos. Isso quer dizer que a verdadeira TIR é um pouco mais elevada. Em defesa da minha hipótese, contudo, posso adiantar que é possível que numa futura reforma da Segurança Social esta percentagem seja reduzida (por ventura até para 0% no caso do cônjuge), dado que as pensões de sobrevivência foram pensadas há várias décadas para um mundo onde as mulheres não trabalhavam a troco de uma remuneração e não tinham uma pensão própria.]

4) O indexante de apoios sociais e os salários reais crescem à taxa de 1.2% ao ano. [Esta é a taxa de crescimento média registada para os salários ao longo dos últimos 35 anos, e nada nos garante que irá ser replicada no futuro. Contudo, as TIRs calculadas não se mostraram sensíveis a diferentes taxas de crescimento dos salários reais, sugerindo que o sistema filtra num ritmo praticamente de 1:1 salários mais elevados (ou mais baixos) com pensões mais elevadas (ou mais baixas). Isto parece implicar que o sistema, da forma como está agora, não pode ser salvo com salários que crescem mais rapidamente, simplesmente porque implicarão também o pagamento de pensões mais elevadas. Isto, se algum governante não decidir aplicar o plafonamento à saída sem tê-lo aplicada à entrada …]

5) O Factor de Sustentabilidade em 2012 é de 0.961.

6) Pagam-se contribuições sociais sobre 14 remunerações brutas e recebe-se também 14 prestações anuais. Não há, portanto, qualquer suspensão dos subsídios de férias e de Natal.

7) A remuneração de referência é simplesmente a média dos 35 anos de remunerações devidamente revalorizadas, ou corrigidas dos efeitos da inflação. [Bem sei que esta hipótese não é totalmente realista dado que está em vigor um período de transição em que, a prazo, usar-se-á toda a carreira contributiva para calcular a remuneração de referência. De qualquer forma, os resultados aqui obtidos ainda são informativos pois dão-nos uma ideia para onde está a convergir a generosidade das pensões de velhice da Segurança Social.]

8) A taxa de formação (média) neste caso é de 2.27%.

9) Porque nem toda a Taxa Social Única (os 11% de contribuições dos empregados para a Segurança Social + 23.75% das contribuições patronais) vai para pagar pensões, adopto a decomposição actuarial da TSU feita pela própria Segurança Social, estimada em cerca de 20%. É assim porque, para além de pagar pensões, há todo um conjunto de despesas sociais (Rendimento Social de Inserção, subsídios de desemprego, apoio social, turismo sénior, etc.) que é financiado com os 34.75%.

10) A actualização anual das pensões é de 0.5% em termos reais.

Ena! Que grande lista de hipóteses. No meio disto, espero não ter perdido todos os leitores. Mas é importante ser o mais transparente possível. Eu bem vos avisei … 😉

Vamos então aos resultados que são apresentados na figura seguinte.

Aproveitei o trabalho para considerar vários cenários alternativos, em torno de um cenário base, que é aquele em que este trabalhador se reforma em 2012 nas condições acima detalhadas. Neste caso, a taxa interna de rendibilidade ou TIR apurada é 3.1% em termos reais. Curiosamente, os PPR que conheço (admito que não os conheço a todos) garantem cerca de 3% EM TERMOS NOMINAIS. Estes 3.1% são em termos reais. Será este valor demasiado generoso? Não me parece mas, no final do dia, o que interessa mesmo é o que o sistema pode pagar com os recursos (as receitas obtidas a partir das contribuições sociais) disponíveis.

Como sabemos, um dos maiores desafios à sustentabilidade financeira da Segurança Social é a evolução da população com 65 ou mais anos (ver a figura seguinte). Neste contexto, é ainda mais preocupante ouvir alguns dos nossos governantes a estimular até a emigração de jovens.

Mas voltemos à figura inicial porque há outros casos a considerar.

Embora esta simples folha de cálculo tenha obviamente algumas limitações em termos de uma análise mais aprofundada das perspectivas financeiras da Segurança Social em Portugal, pode, mesmo assim, ser usada para responder a um conjunto de questões muito interessantes:

Q1. O que se ganhou com a última reforma do sistema público de pensões da Segurança Social encetada pelo último Governo PS por volta de 2007?

R1. A taxa interna de rendibilidade anual para alguém nas condições das hipóteses assumidas (que se entende ser representativo) que se reforma em 2012 baixou de 3.4% para 3.1% em termos reais. [A título de informação, recorda-se que na anterior fórmula de cálculo, a taxa de formação era 2%, a remuneração de referência era calculada como a média dos melhores 10 dos últimos 15 anos de remunerações revalorizadas à data da reforma, e não havia qualquer factor de sustentabilidade.]

Q2. Sem quaisquer outras medidas de política, quanto será a taxa interna de rendibilidade para alguém que se reformará em 2060 (nas mesmas condições assumidas nas hipóteses)?

R2. Nesse caso (ver a barra a azul intenso na figura) a taxa interna de rendibilidade será 0.8 pontos percentuais mais baixa, quando comparada com os 3.1% do cenário base onde se reformam em 2012. Nesse caso, a TIR será de 2.3%. Conclui-se, assim, que o principal efeito da reforma encetada foi reduzir mais substancialmente a generosidade do sistema para quem se reformar daqui por umas décadas. O que muda neste caso face ao cenário base? O factor de sustentabilidade (já aprovado) será em 2060 0.7661 e não os 0.961 em 2012.

Q3. Sabemos que uma das principais dificuldades em fazer projecções demográficas a longo prazo é estimar a longevidade dos mais idosos. E se, em vez de viver 20 anos depois de se reformar em 2012, o pensionista viver 25 anos até ao final dos 89 anos de idade? Como mudam os resultados da TIR?

R3. Olhando para a figura, constatamos que um aumento de 5 anos em termos de longevidade traduz-se numa TIR próxima dos 4% em termos reais, i.e. 0.9 pontos percentuais mais elevada do que no cenário base. Conclui-se que o risco de longevidade é grande.

Q4. Última pergunta: Antecipando a possibilidade de serem necessárias novas medidas para tornar o sistema financeiramente mais sustentável, o que sugere?

R4. Pondo de parte alternativas mais dramáticas como i) a tributação das pensões ou ii) a prossecução de políticas que resultam em inflação acima da esperada e que servem para erodir o valor da obrigação do Estado em termos reais (tanto num caso como noutro, o Estado cumpre a sua obrigação em termos nominais mas é como se desse com uma mão e tirasse com outra), aqui podemos dividir as medidas ou alterações paramétricas em dois grupos: as que afectam o stock (i.e. afectam todos os pensionistas) e as que afectam o fluxo (afectando apenas os novos pensionistas, i.e. aqueles que se reformam).

Analisemos primeiro as medidas que afectam todos os pensionistas porque, em caso de crise orçamental, é para aqui que o responsável pelas Finanças olhará. Aqui encontramos (há outras alternativas obviamente – é um bom exercício para o leitor tentar pensar em que alternativas são essas) – uma actualização ou aumento das pensões em termos nominais abaixo da inflação registada, implicando assim uma perda de poder de compra e a suspensão dos subsídios de férias e de Natal.

Olhando para as barras a verde mais carregado conclui-se que uma actualização real que é PERMANENTEMENTE 1 ponto percentual abaixo do cenário base permite reduzir a TIR de 3.1% para 2.8%. Um ganho de 0.3 pontos percentuais, portanto. Curiosamente, verifica-se que uma medida dessa natureza (lembre-se que tem de ser para todo o sempre ou então não vale) é equivalente à suspensão (também permanente) de um dos dois subsídios. Acabar com qualquer um dos dois subsídios (férias e Natal) baixaria a TIR para TODOS os pensionistas em 0.6 pontos percentuais! Esta é uma redução muito significativa – é equivalente a duas reformas da Segurança Social encetadas pelo Governo PS por volta de 2007.

E quanto às medidas paramétricas que afectam apenas o fluxo, i.e. afectam apenas os novos pensionistas de velhice que se reformam em cada ano?

Aqui analisei apenas duas variantes: A) A redução da taxa de formação das pensões de 2.27% (em média) para os anteriores 2%, e B) o aumento da idade legal de reforma dos 65 para os 66, 67, e 68.

Para além de ser pouco equitativo fazer com que uma geração suporte todo o ajustamento necessário, conclui-se que, de um ponto de vista paramétrico, a redução da taxa de formação da pensão é muito mais eficaz na redução da TIR do que o aumento da idade de reforma. Para serem equivalentes, seria necessário passar a idade legal de reforma dos 65 para os 73!!!!

Adiar a idade legal de reforma em um ano traduz-se em mais um ano de contribuições sociais pagas (e recebidas pela Segurança Social), mas depois concretiza-se numa pensão estatutária mais elevada pois o número de anos de contribuições aumentou.

Politicamente, parece-me muito mas muito mais complicado convencer os parceiros sociais a assinar um acordo onde se aumenta a idade legal de reforma do que fazê-los aceitar uma taxa de formação mais baixa.

Finalmente, resta-me pedir desculpa por este centésimo post que acabou por sair muito mais longo do que o esperado. 🙂

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Sobre Pedro G. Rodrigues

Investigador integrado no Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) e Professor Auxiliar do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa. Doutorado em economia pela Universidade Nova de Lisboa. Email: pedro.g.rodrigues@campus.ul.pt
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